No blog As Falas da Pólis.
Confiram a entrevista concedida ao blog, via bate papo do Facebook, pelo  professor universitário e afro-religioso Arthur Leandro, que neste Dia  da Igualdade Racial, revela o quanto a sociedade brasileira e  principalmente o Estado continuam omissos na garantia de direitos das  comunidades negras que lutam pela afirmação de seus valores culturais e  relegiosos.
Diógenes Brandão - Qual é o contexto de discriminação contra as comunidades tradicionais de terreiros?
Arthur Leandro  - Nossa situação é fruto da violência da colonização portuguesa que  resulta em 04 séculos de perseguição por parte da Igreja Católica - na  monarquia portuguesa e império luso-brasileiro. Depois fomos perseguidos  pelo estado republicano, pois mesmo que a primeira constituição já  tivesse um artigo que garantisse a liberdade de culto religioso, essa  liberdade vinha acompanhada de um parágrafo único que dizia que “desde  que [o culto religioso] não perturbasse a ordem e os bons costumes”, e,  como os juízes dessa causa eram racistas e cristãos, uma religião de  gente negra e que canta, dança incorpora e faz oferendas... Era  considerada perturbadora dessa dita ordem e bons costumes.
Quando  a constituição de 1988 finalmente tira esse parágrafo único do texto  constitucional é que legalmente passamos a ter o direito pleno à  consciência religiosa e aos cultos religiosos, mas é mais ou menos no  mesmo período que um outro fenômeno ganha força no Brasil: o  fundamentalismo cristão das seitas neo-pentecostais. A questão  problemática é a imposição dos fundamentos teológicos de uma crença  sobre a outra através da força, e no caso dos brasileiros, e para piorar  a situação, essas seitas fundamentalistas que elegem as religiões  afro-brasileiras como “o demônio a ser combatido” usam do poder  econômico para fazer campanhas difamatórias através dos meios  eletrônicos e digitais de comunicação de massa dos quais são  proprietárias, e eles possuem emissoras de televisão e emissoras de  rádio - que são concessões públicas do Estado brasileiro através de seu  presidente – e esse espaço público concedido pelo presidente é utilizado  para juntar um “exercito de Deus”, ou outros nomes como “batalhão de  Jesus”, para duas funções: 1) promover uma guerra santa contra as  praticas religiosas afro-brasileiras; e 2) promover candidatos a cargos  eletivos políticos e, com eles, ou vem gestões da administração pública  (principalmente em prefeituras de interior) que promovem verdadeiras  caças às bruxas e jogam no lixo a laicidade constitucional do Estado  Brasileiro, ou então vem os legisladores a propor Leis que trazem em  seus textos (abertamente ou nas entrelinhas) impedimentos às nossas  práticas religiosas...
Diógenes Brandão - Mas o que as políticas públicas aplicadas pelos governo federal e estadual mudou essa situação nos últimos 10 anos?
Arthur Leandro  - (risos) Muito pouco. Na verdade considero que nenhum governo tem o  poder, e nem pode ter a pretensão, de em uma única década mudar a  cultura social de segregação que foi construída em cinco séculos de  práticas racistas, intolerantes e discriminatórias.
Diógenes Brandão - Então o que foi feito até agora no Brasil de nada valeu?
Arthur Leandro - Eu não estou dizendo isso, mas temos que ter a compreensão de que a luta política não se ganha com varinha de condão de fada madrinha, é uma luta cotidiana – lembras do primeiro aprendizado dos militantes de esquerda e de Direitos Humanos? Dois passos pra frente e um prá trás...
Diógenes Brandão - E falando do Pará, quais as políticas para comunidades de terreiros existentes no Estado do Pará?
Arthur Leandro  - No governo Jatene? Nada! Pra quem não se lembra, a campanha do  primeiro governo do Jatene em 2002 protagonizou uma das maiores  intolerâncias religiosas no estado do Pará. 
Diógenes Brandão - Como foi isso?
Arthur Leandro  - O caso foi o seguinte: a gestão municipal era petista, com Edmilson  Rodrigues, e o vereador Ildo Terra (PT) havia procurado lideranças de  Terreiros para conversas que pudessem instrumentar o seu mandato para a  proposição de políticas públicas para povos de terreiros. 
Uma  das coisas que eu falei ao Ildo Terra foi que em 1994 o Mansu Nangetu  precisava fazer um ritual fúnebre no cemitério, e a prática até então  era a de subornar os vigilantes noturnos e fazer esses rituais na  madrugada. 
Disse  que eu convenci os sacerdotes do Mansu que a constituição nos dava  liberdade de culto e que não precisávamos mais desses artifícios para  realizar os nossos rituais, e então fomos ao cemitério municipal de  Santa Isabel às 14h. 
O  cemitério não estava preparado para nos receber, e em principio o  porteiro não nos permitiu a entrada, criando uma situação constrangedora  que se resolveu depois de muito stress.
Dessas  conversas com a base do governo municipal se traçou diversas ações que  promoviam a cidadania da população de terreiros, inclusive um ato  administrativo que orientava os funcionários dos cemitérios municipais  para o tratamento digno a praticantes de quaisquer religiões e que  evitava constrangimentos como o que tínhamos passado.
Um dos  resultados dessas conversas foi a Festa das Raças, que aconteceu no  final de agosto de 2002 dentro do Palácio Antônio Lemos, e que celebrava  a conquista de políticas públicas e cidadania e a visibilidade social  que a prefeitura finalmente promovia para povos de terreiros. Essa  celebração foi filmada pelo gabinete do então vereador evangélico e  fundamentalista Paulo Queiroz (PSDB), e essas imagens foram utilizadas  em duas edições grosseiras que misturavam as imagens da festa com  imagens de suposto despachos dentro de túmulos e que usavam linguagem  jornalística para caluniar o prefeito e as comunidades de terreiros com a  seguinte manchete “Prefeito abre cemitérios para macumbeiros violarem  túmulos”.
Uma  edição de 4 minutos com essa montagem caluniosa que apresentava a  população de terreiros como criminosa e violadora de túmulos, foi  exibida no SBT no programa do Ratinho em rede nacional, e uma outra de  12 minutos que acrescentava argumentos de que o PT havia feito um pacto  com o diabo para ganhar a eleição, foi copiada em DVD e distribuída pelo  também evangélico Heitor Pinheiro, que coordenava o comitê de campanha  do Jatene e hoje dirige o IAP, para as Igrejas evangélicas  fundamentalistas.
No programa do Ratinho (veja o vídeo),  e em rede nacional, essa calúnia travestida de matéria jornalística foi  veiculada na noite da sexta-feira, dia 1º de outubro de 2002 – A  votação em primeiro turno da eleição era no domingo dia 3 de outubro,  dois dias depois.
Para  encurtar a estória, essa estratégia caluniosa e difamatória que  arrecadou votos à custa da humilhação pública e criminalização de  práticas religiosas contribuiu com a vitória do Jatene no Estado do Pará  contra a candidata Maria do Carmo (PT) que vinha sendo apontada como  possível governadora, mas não afetou a vitória do Lula para presidente  do Brasil.
Diógenes Brandão - Passada a eleição, o governador eleito, houve políticas públicas de promoção da cidadania de povos de terreiros?
Arthur Leandro - Com um histórico de eleição construído em alicerces de preconceito e intolerância religiosa? É lógico que não! Nenhuma, nada.
Para  não dizer que não houve nenhuma política para a população negra, o  gestão do PSDB criou o Programa Raízes, mas este era voltado apenas para  as comunidades quilombolas rurais, e era política de pão e circo, pois  fazia festas, mas que pouco se fazia em termos de regularização  fundiária nessas comunidades, um dos principais problemas apresentados  por elas. 
Eles  (os gestores do programa) não entendiam e muito menos atendiam as  necessidades do Movimento Negro urbano, não tinham ações voltadas para a  juventude, mulheres da cidade e muito menos atendiam diretrizes de  cidadania para o recorte afro-religioso.
Diógenes Brandão - Essa realidade já mudou?
Arthur Leandro - Vou começar criticando os governos do Lula e da Ana Júlia, vou começar com os passos prá trás.
Ao  mesmo tempo em que o governo Lula cria a SEPPIR - Secretaria Especial  de Promoção da Igualdade Racial - e com ela elabora e implanta  diretrizes que promovem a diversidade étnico-racial, ele faz acordo com o  Vaticano para o ensino religioso católico e libera a concessão da  Record News e aumenta o poderio do sistema de comunicação da TV Record  que é a maior violadora dos Direitos Humanos da televisão brasileira e  principal veículo de ataque às religiões afro-brasileiras, e não por  acaso, é propriedade de uma igreja fundamentalista.
Também  posso dizer que o primeiro ponto negativo do governo Ana Júlia foi à  missa católica na sua posse, e logo em seguida o veto para a Lei que  criava as cotas raciais na Universidade do Estado do Pará.
Diógenes Brandão - Mas sendo o governante católico, ele também não tem o direito de consciência religiosa?
Arthur Leandro  - Claro que a cidadã Ana Júlia tem o direito ao culto, e não estou  reclamando de todas as missas semanais que ela, enquanto praticante  daquela religião, tenha frequentado, eu reclamo da missa que ocorreu no  ato de posse da governadora, porque o ato de posse é uma cerimônia de  transmissão do cargo do governante do Estado, e o Estado não é laico?
Eu  não tenho domínio legal para me aprofundar nesse assunto, e nem sei se  há um entendimento final da justiça brasileira, mas penso assim...  Primeiro, é impossível não relacionar o ato político de posse da  governante do Estado, ao ato religioso de missa de ação de ação de  graças que abençoava o seu governo, e isso ficou muito parecido com o  aval religioso que os representantes dos Papas davam aos governantes nas  coroações de reis e imperadores europeus e aos dois imperadores  luso-brasileiros. Por outro lado, ali, naquele ato, ela representava  todo o povo paraense e não apenas a cidadã Ana Julia, alí ela era todos  nós, inclusive os afro-religiosos.
E ai a  minha conclusão é que naquele ato ou deveriam estar representantes de  todas, ou de nenhuma, das religiões que fossem presentes em todo o  Estado, as afro-brasileiras, as ameríndias, as religiões orientais, as  diversas formas de cultos dos cristãos e toda a diversidade religiosa,  senão parece que a crença dos chefes de Estado se sobrepõe sobre toda a  diversidade religiosa, como sempre foi no Brasil.
Diógenes Brandão - Você acha que isso pode ser considerado um ato proposital, de afirmação de sua religião sobre as demais ou algo que culturalmente esteja implícito, ou quem sabe entranhado na cultura destas pessoas com outras formações religiosas?
Arthur Leandro - Não!  Ao menos não da parte dela, pelo que conheci dela acho que tem haver  com a formação cultural, mas isso precisa mudar e como precisa.
Diógenes Brandão - Agora vamos falar dos passos à frente...
Arthur Leandro  - (risos) Se eu for avaliar com rigor, há um abismo entre o que nós,  comunidades de terreiros, alimentamos como esperança nos governos Lula e  Ana Julia e aquilo que foi feito na prática. O problema nem estava na  pessoa dos governantes, mas nos costumes sociais que nos faz voltar  novamente para o embate político e os passinhos pra frente e pra trás.
No  Estado teve um assessor afro-religioso na Casa Civil que pôde estreitar  a comunicação das comunidades com a governadora, mas não foi criada a  secretaria da igualdade racial como a do governo federal, e as políticas  da igualdade foram diluídas em coordenadorias em algumas poucas  secretarias como a SEDUC e a SEJUDH, e de Comunidades Tradicionais na  SESMA e na SESPA, e sequer foi criada uma coordenadoria de igualdade ou  de comunidades tradicionais na SECULT... E essas coordenadorias não  tinham orçamento anual para tornar possível desenvolver diretrizes  políticas com resultados visíveis e as ações foram pontuais e não  tiveram continuidade.
Diógenes Brandão - Qual a sua avaliação então, positiva ou negativa?
Arthur Leandro  - Com toda a ambiguidade da situação, são governos que avaliamos que  tivemos ganhos nas questões de cidadania e de acesso aos bens e serviços  públicos.
Diógenes Brandão - Como assim?
Arthur Leandro -  Temos reclamações de baixo orçamento da SEPPIR e da Fundação Palmares,  de nenhuma ação nacional de campanhas publicitárias televisivas de  combate à intolerância religiosa e respeito à diversidade étnico-racial,  da complicada distribuição de recursos de investimentos que concentrou  ações na Bahia e no Rio de Janeiro, para contextualizar o sentimento em  relação à política na esfera federal eu vou usar trechos de documento  assinado por lideranças de todo o Brasil em apoio para a candidatura da  presidenta Dilma.
Nós reconhecemos que “foi  graças ao Governo Lula que o Povo Tradicional de Terreiro passou a ser  tratado com alguma distinção, mas as ações estruturantes do governo  federal ainda não chegaram até nós como deviam. A grande maioria ficou  fora, não consegue escrever projetos na linguagem oficial do governo,  faltou investimento na capacitação de nosso Povo”. 
E continua dizendo que queremos a “continuidade  das ações afirmativas do governo federal que deram a População Negra o  que lhe foi secularmente negado desde a chegada do primeiro negro  escravo ao Brasil, entre as que mais se destacam está a criação da  SEPPIR, a Saúde Integral da População Negra, a Lei 10.639 e o polêmico  Estatuto da Igualdade Racial que não é o que nós quereríamos, mas que é  um ponto de partida para novas conquistas”. (ver aqui http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=P2010N3366)
Diógenes Brandão - E no Estado do Pará?
Arthur Leandro  - Aqui tivemos conquistas na área da cultura, com ações do Patrimônio  Histórico como o tombamento e recuperação das instalações do prédio do  Terreiro de Mina Dois Irmãos (ver em http://www.defender.org.br/
Tivemos  conquistas significativas na área de saúde e de segurança alimentar e  nutricional, principalmente com o apoio incontestável para as ações da  Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e a participação dos  agentes da secretaria de saúde em campanhas preventivas em vários  terreiros.
Na  área de Direitos Humanos nós participamos da elaboração do Plano  Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que assim como o  Estatuto da Igualdade Racial, também não reflete o que queríamos, mas  encaramos como um ponto de partida para conquistas futuras. Também  tivemos apoio para celebrar datas cívicas como a realização da “Feira  Preta” e outras manifestações em celebração ao dia da Consciência Negra,  ao dia de combate à intolerância religiosa e outras ações pontuais em  comunidades de terreiros.
Diógenes Brandão - Você considera que essas conquistas foram importantes para o conjunto do Movimento Negro?
Arthur Leandro  - São muito importantes porque no governo Ana Júlia as pequenas  conquistas foram protagonizadas pelas lideranças de terreiros... Por  exemplo, no governo anterior do Jatene, a SECULT editou dois CDs de  músicas de terreiros, mas foram projetos da professora Anaysa Vergolino,  assinadas como pesquisadora da UFPA, enquanto as conquistas no governo  Ana Júlia foram projetos elaborados no seio das comunidades de  terreiros...
Compreendes  a diferença? Apesar de poucas mudanças na estrutura social, no governo  Ana Julia foi possível desenvolver o sentimento de pertencimento das  comunidades de terreiros, nós nos sentíamos parte da coisa...
Diógenes Brandão - Sim, mas como se deu essa participação?
Arthur Leandro  - A cultura da participação talvez seja o maior legado que as gestões  petistas em Belém e no Pará tenham deixado para as comunidades de  terreiros, desde os congressos da cidade na gestão municipal de Edmilson  Rodrigues até as conferências e os conselhos e demais instâncias de  diálogo entre a sociedade e a gestão estadual. Hoje nós temos  representantes em quase todos esses espaços, representações que  aprenderam a lutar pelos seus direitos.
Diógenes Brandão - Como isso foi possível?
Arthur Leandro - Assim  como no caso do governo Lula, foi a distinção de tratamento dispensada  pela equipe de governo e a valorização dessas comunidades o que  possibilitou que nossas lideranças se sentissem fortalecidas para a  mudança cultural. 
Falo  de mudança de comportamento social, pois quando queremos mudar uma  realidade temos que começar a mudar pela cultura, o comportamento... E  devo admitir que antes das administrações petistas a cultura era de  confinar as comunidades de terreiros em guetos e na invisibilidade  social, enquanto hoje nós temos lideranças de terreiros disputando o  espaço político em pé de igualdade com outros setores da sociedade, e  ocupando esses espaços.
No  Estado do Pará, temos representação no Conselho da Mulher, no Conselho  de Segurança Alimentar e Nutricional, somos um terço da representação da  sociedade no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, estamos  em quase todas as delegações que representam o estado nas conferências  nacionais e estamos da disputa para o Conselho Estadual de Cultura, do  qual já fizemos parte, mas que foi destituído por problemas no processo  de seleção.
Diógenes Brandão - Aproveite para concluirmos essa entrevista com a liberdade de deixas suas últimas palavras para este blogueiro. 
Arthur Leandro - Diante  de tudo o que nós conversamos, e mesmo que não possamos afirmar que não  exista discriminação e preconceitos contra as comunidades de terreiros  do Brasil, do Estado do Pará e de Belém, as diretrizes dos governos  Lula, Ana Júlia e Edmilson Rodrigues modificaram aquilo que é o mais  importante: A atitude dos povos historicamente excluídos nos processos  de colonização e de desenvolvimento regional e nacional, e com isso  despertaram a necessidade de protagonizarem a luta pelos seus diretos de  cidadão.
Diógenes Brandão - Boa noite e muito obrigado Arthur!
Arthur Leandro - Boa noite e muito axé pra todos nós!
Diógenes Brandão - Boa noite e muito obrigado Arthur!
Arthur Leandro - Boa noite e muito axé pra todos nós!
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Nome civil: Arthur Leandro.
Profissão: Artista/ Professor da UFPA.
Nome religioso: Táta Kinamboji uá Nzambi.
Cargo sacerdotal: Táta Kisikar'Ngomba.
Terreiro: Mansu Nangetu – Mansubando Keke Neta.
Religião: Candomblé.
Nação: Angola.Twitter: @etetuba
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