terça-feira, 8 de outubro de 2013

ARTIGO: MARIA DA PENHA, A LEI QUE "PEGOU". POR GLAUCIA FRACCARO E MARINA BRITO

Glaucia Fraccaro é historiadora social e militante do PT. Foi Coordenadora-Geral de Autonomia Econômica das Mulheres na Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
Marina Brito é doutoranda em Ciência Política na UFMG. Foi consultora da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Atualmente pesquisa políticas públicas e a relação entre movimentos feministas e o Estado na América Latina.

Na semana passada, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apresentou números alarmantes acerca da violência contra a mulher no Brasil. Segundo o estudo, a taxa de mortalidade de mulheres vítimas de agressão não sofreu declínio após a aprovação da Lei Maria da Penha, em 2007. As taxas de mortalidade por 100 mil mulheres (vítimas de agressões) foram 5,28 no período entre os anos 2001 e 2006 (antes da Lei) e 5,22 no período entre 2007 e 2011. Estes dados provocaram um amplo debate na sociedade sobre o impacto da Lei Maria da Penha, tendo como referência estes números, não teria sido capaz de combater a violência contra as mulheres no país.

É muito comum a sociedade brasileira tratar os avanços legislativos como “letra morta” ou coisa “para inglês ver” e foi justamente nesta perspectiva que os números do Ipea sobre a “Maria da Penha” refletiram mais fortemente. O que os números não contaram foi que esta Lei promoveu o maior avanço para os direitos das mulheres como não se via desde a Constituição Cidadã de 1988, erigido a partir das demandas dos movimentos sociais e em um processo histórico de construção sólida com o parlamento, o Poder Executivo, Judiciário, a sociedade brasileira e a comunidade internacional.

Os casos de violência doméstica contra as mulheres, antes da aprovação da Lei Maria da Penha, eram julgados nos Juizados Especiais Criminais, previstos pela Lei 9.099/95. Estes juizados foram criados para facilitar o acesso da população à justiça em casos considerados de baixa gravidade. Contudo, cerca de 90% dos processos relacionados à violência doméstica analisados no âmbito destes Juizados terminavam em arquivamento nas audiências de conciliação, sem que as mulheres encontrassem uma resposta efetiva do poder público à violência sofrida. Nos poucos casos em que ocorria a punição, o agressor era, geralmente, condenado a doar cestas básicas para alguma instituição filantrópica.


Dessa forma, no balanço dos efeitos da aplicação da Lei 9.099/95 e da recepção dos casos de violência doméstica pelos juizados especiais, diversos grupos feministas e instituições que atuam no atendimento a vítimas de violência doméstica constatavam que a manutenção dos julgamentos dos casos naquela instância favorecia a impunidade dos agressores e que as Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAM’s) não tinham a estrutura suficiente para atender as mulheres que a ela recorriam. Era essencial para os movimentos feministas que se aprovasse uma lei que previsse o reconhecimento do crime e o tratamento integral e atendimento à mulher vítima de violência.

Em 2006, foi aprovada a Lei 11.340 que ganhou o nome de Lei Maria da Penha em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, cujo caso de violência doméstica foi levado à Corte Internacional de Direitos Humanos, em 1998, como denúncia de violação de Direitos Humanos, resultando ao Estado brasileiro punição por desrespeito à Convenções Internacionais de Defesa dos Direitos Humanos das quais o Brasil é signatário.

O caso se tornou um ponto de partida para a mobilização de diversas entidades e organizações da sociedade civil brasileira, que buscando apoio e legitimação internacionais para a reivindicação de ações do Estado na prevenção da violência doméstica, se uniram em um consórcio de organizações para escrever o primeiro texto do projeto que um dia viria a se tornar lei. O texto da lei foi apresentado à Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) que atuou como importante articuladora pela aprovação da lei dentro do Poder Executivo. Juntamente com a Bancada Feminina, a SPM/PR apresentou ao Congresso Nacional uma nova versão do projeto em 2004.

Esse projeto, apesar do desejo e da pressão dos atores envolvidos em sua aprovação, permaneceu mais de um ano em tramitação na Câmara. Somente em março de 2006, aproveitando as comemorações organizadas pela Bancada Feminina todos os anos, durante a semana do Dia Internacional da Mulher (8 de Março), o projeto foi finalmente votado e aprovado pela Câmara. Tanto a não aplicação da Lei 9.099/95 quanto a implementação dos juizados especiais foram mantidos no projeto aprovado.

A Lei Maria da Penha foi um enorme avanço no que diz respeito à política de enfrentamento a violência contra a mulher pelo Estado brasileiro. As DEAM’s e os juizados especiais oscilavam entre uma abordagem da criminalização e da descriminalização, nenhuma delas eram capazes, por si só, de lidar com o fenômeno da violência doméstica. Com a lei de 2006 foi possível absorver amplamente várias demandas do movimento, reforçando a criminalização ao tornar mais rígida a pena contra o infrator, estipulando um conjunto de atendimentos públicos integrados, além de prever as medidas preventivas e protetivas (aquela que mantém o agressor longe da vítima), todos instrumentos caros às mulheres vítimas de violência.

A violência contra a mulher é um problema multidimensional, e os avanços que a Lei alcança ao assumir essa abordagem se une à intensa agenda de formulação e aplicação de políticas específicas para as mulheres dirigida pela SPM. Inserção e permanência no mercado de trabalho, geração de renda, fortalecimento da rede de atendimento às mulheres em situação de violência, inserção das mulheres no mundo acadêmico e científico, saúde e direitos reprodutivos. Como resultado, é possível afirmar que, nos últimos anos, mais mulheres entraram no mercado de trabalho do que os homens e que as mulheres são maioria nos programas de capacitação profissional promovidos pelo governo federal.

A Lei Maria da Penha é fundamental para despertar uma nova cultura política e jurídica na sociedade brasileira. Ela inaugurou uma era de garantias de direitos sociais, que antes dela, não estavam disponíveis. É fundamental também para que os agentes das políticas públicas possam tomar consciência de que é papel do Estado intervir em situações de opressão violenta de gênero sem se valer de preconceitos e práticas discriminatórias que ainda persistem. Não seria exagero afirmar que parte da eficácia da aprovação da lei está nas mãos destes agentes.

A Lei Maria da Penha deu novo estatuto para a violência contra mulher e seu impacto não deve ser auferido apenas pelo número de feminicídios, apesar da importância que o dado tem. Desde sua aprovação, o número de denúncias de violência contra a mulher passou de setecentos mil e as medidas protetivas passam de trezentos mil. Os números de condenações e prisões se elevam ano a ano. O que antes era tratado como “crime passional”, havia se tornado caso de justiça social. Apenas 2% da população brasileira afirmam não conhecer a Lei 11.340/2006. De Eliana de Grammont a Eliza Samudio, a mudança no pensamento social brasileiro é consistente e avança para a noção de que as mulheres são gente, com direitos iguais. A Lei Maria da Penha é mesmo uma lei que “pegou”.

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